Os
salários mais baixos da Europa, milhão e meio de emigrantes, milhares de
desempregados, de gente que sobrevive a «ganchos», a «golpes», a horas
extraordinárias, pensões e reformas de miséria, alugueres de rapina, vilas e
aldeias que desapareceram, campos despovoados, saúde só para quem tem dinheiro,
escola em crise, tudo isto depois de três guerras…
O Palha d’Aço pensava em seu pai, na tristeza de vê-lo babado,
misérrimo, alheado de tudo, com os cigarros contados, a ruminar a sua morte, a
sua pobre morte indefesa, e imaginava os piaçabas pilões, o autoclismo
gigantesco que seria preciso descarregar sobre esta «democracia».
Aquela noite opaca e sufocante tinha de acabar, ou ficaremos para sempre
incapazes de enfrentar a vida, perdida nas picadas desertas do passado, quando
tudo em nós apela ao voo sem amarras, como uma gaivota por cima do mar.
Mas o Palha d’Aço não era Ícaro. Já não tinha vontade de voltar à
demanda daquele algures que exige infinitas viagens, debatia-se numa trama
confusa, como um cego que recupera a vista e não suporta o terror, o desgosto
da miséria e fealdade que o rodeiam, e hesita se há-de voltar a encerrar-se nas
trevas, outra vez cego pelo sol do deserto.
O que ele perguntava era como é que havia de reencontrar, num mundo de
imagens e falsificações, o contacto verdadeiro com o real, preservando na
evocação dos lugares, dos seres e das suas histórias a parte de inacabamento e
de mistério que lhes cabia, na qualidade única de cada uma das suas horas.
À força de odiar as coisas, acaba-se por invejar a sua força silenciosa,
a autonomia que irradiam, como se a mineralização fosse a única escapatória
possível ao inferno quotidiano, à cólera devastadora acesa por uma
«civilização» cuja ideologia exclusiva é o fabrico em série e a venda de não
importa o quê…
As Coisas Naturais (Averno 059)
As Coisas Naturais (Averno 059)